Em reportagem recente exibida pelo Fantástico alerta-se que 20% dos jovens se automutilam. Tal fenômeno vem me chamando atenção tanto por serem relatados nos meus atendimentos quanto por relatos de outros profissionais com contato regular com jovens que contam ser uma prática regular.
Geralmente, a automutilação ocorre na forma de cortes superficiais, lesões que não precisam de sutura ou tratamento específico. Os locais mais comuns para a realização dos cortes são punhos, antebraços, parte anterior das pernas e abdômen. São realizados com navalha, estilete, faca ou mesmo lâmina de apontador de lápis.
Diante disso me vem o questionamento: que sociedade é essa que vivemos que produz esse tipo de fenômeno?
Na matéria vinculada pelo Fantástico destaca-se o quanto o ambiente escolar e familiar hostil acabam por produzir esse fenômeno, porém também percebi uma certa tendência em pesar na balança um jovem que se deixa calar.
Acredito ser importante analisarmos bem o ambiente em que o jovem está inserido, para não acreditarmos na falácia de que basta o jovem falar sobre episódios de bullying ou rejeição que vem sofrendo para que tudo se resolva. Além da importância desses jovens terem um espaço acolhedor também é importante observarmos como tais espaços têm mostrado fragilidades na relação com os jovens.
Bernardes (2015 ) aponta que há semelhanças nos discursos dos adolescentes: contam que conhecem alguém que já praticou a automutilação, muitos leram sobre o assunto na Internet, outros conhecem famosos/artistas que praticam ou praticaram o comportamento ou mesmo acreditam servir de modelo para outros jovens. Outro relato frequente é de que a “dor da alma” é intensa, e a automutilação faz com que se amenize essa dor, como se a dor real do corpo fosse menor do que a “dor da alma”.
Em sua pesquisa Bernardes (idem) cita matéria da revista médica The Lancet (2012) que associa a automutilação com sintomas de depressão e ansiedade, comportamento antissocial, abuso de álcool, cannabis e tabagismo.
Porém, é importante observarmos tal fenômeno não apenas sob a ótica de uma visão médica e sim como um processo social complexo. Patricia Adler e Peter Adler (2007) apontam o ato de automutilar-se como sendo intencional e uma forma de lidar com sentimentos como raiva e frustração, o comportamento é visto pelo jovem como um mecanismo de enfrentamento diante de um mundo que não o integra e um meio de expressão.
Para Le Brant (2010), antropólogo francês, a pele funcionaria como uma membrana que participa do processo de separação-individuação do sujeito, pois é a pele que ao mesmo tempo separa o sujeito do meio também permite tal conexão. Deste modo, modificar a pele é um recurso para alterar a relação entre o EU e o OUTRO (idem).
Bernardes (idem) acredita que ao se automutilar o adolescente torna visível sua dor saindo de um lugar de invisibilidade para a visibilidade do corpo.
Assim, o ato de automutilação é um pedido de socorro! Uma forma desesperada de tornar a sua dor visível e deste modo ser possível sair de um lugar de invisibilidade.
“Há uma fome mais funda que fome, mais exigente e voraz que a fome física: a fome de sentido e de valor; de reconhecimento e acolhimento; fome de ser – sabendo-se que só se alcança ser alguém pela mediação do olhar alheio que nos reconhece e valoriza” (ATHAYDE, et. al, 2005, p. 215).
REFERÊNCIAS:
ADLER, P. A; ADLER, P. (2007).The Demedicalization of Self-Injury: From Psychopathology to Sociological Deviance. Journal of Contemporary Ethnography, vol. 36. n. 5, p. 537-570.
ATHAYDE, C. et al. (2005). Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva.
BERNARDES, SM. (2015). Tornar-se (in)visível: um estudo na rede de atenção psicossocial de adolescentes que se automutilam. Florianópolis, SC.
G1. (2017). Automutilação afeta 20% dos jovens. Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/videos/t/edicoes/v/automutilacao-afeta-20-dos-jovens-brasileiros/5462323/
LE BRETON, D. (2010). Escarificações na adolescência: uma abordagem antropológica. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 16, n. 33, p. 25-40.